quinta-feira, 30 de setembro de 2010
TEMPO BOM: O ÚLTIMO CANTO DO CISNE
Por invenção poética ou genial expressão metafórica, o último canto do cisne é linguagem artística e intuição popular que serve como reconhecimento a alguém que parte deixando na vida uma grande obra, principalmente suas realizações quando a morte já se aproximava.
No momento em que antecedeu a sua morte, o cisne começou a cantar uma canção extremamente bela, capaz de fazer chorar quem ouvia. As águas se encantaram, a brisa parou para ouvir, a natureza se extasiava silenciosamente. Momentos depois e o silêncio...
Diz, pois, a lenda que um cisne branco que por toda vida viveu emudecido e triste, diuturna e solitariamente vagando pelos remansos do lago azul, ao sentir a morte se aproximando emitiu um magistral e melodioso canto, algo incomparável com o canto jamais visto em qualquer outro cisne.
Assim, a expressão o último canto do cisne possui o significado de últimas realizações de uma pessoa, a derradeira e mais importante obra de um artista, os últimos grandes momentos de alguém, aparição final inesperada e dramática. Quer dizer, a demonstração de todo o esplendor no último ou nos últimos instantes de vida.
Os cisnes da vida real continuam existindo. Não possuem plumagens, mas nomes e sobrenomes, são humildes e do bom coração, e estão por aí nos lagos que os nossos olhos queiram enxergar. A morte, que chega num instante e tenta apagar tudo, ainda assim jamais será capaz de apagar as grandes realizações, os grandes feitos, as grandes conquistas, a vida que se justificou ser vivida porque aquele que parte não vai como aquele que nada semeou.
Ademais, pessoas existem que são cisnes cantando pela vida inteira. Não haverá um reconhecimento somente porque nos últimos instantes, momentos ou anos de vida ainda tiveram forças para deixar seus frutos, mas sim porque durante todo o percurso da existência cantaram bem alto feito o mais belo cisne, através de ações que, mesmo não sendo imediatamente visíveis, representaram grandes feitos.
Ora, mesmo o cisne sendo empobrecido, com muitos problemas pessoais e familiares para resolver, ainda assim possuía um coração que não abdicava em fazer o bem. Quantos cisnes desse tipo vemos por aí? Sob quantos lagos vivem se esforçando estes cisnes para que o bem seja semeado, pessoas carentes recebam os frutos desse fazer e possam sorrir porque alguém lhes olha como importantes.
Cisnes desse tipo estão navegando nas tormentas dos leitos hospitalares com suas preces e gestos de amizade; nos sanatórios e asilos com suas mãos amigas, dando o mínimo de carinho e atenção que muitas pessoas necessitam; estão nos centros de tratamento e recuperação de drogados dando palestras, relatando suas experiências de angústia e de sofrimento, tentando ajudar na organização de vidas desajustadas.
Estão ainda perambulando pelas ruas, indo de casa em casa pedindo qualquer auxílio para ajudar famílias faveladas, desalojadas, em risco de tudo; estão vagando pelas noites distribuindo uma caneca de café com leite, mingau ou suco com um pedaço de pão, para aqueles que estão dormindo ao relento, sob marquises ou debaixo de qualquer lua. E certamente serão vistos ouvindo pessoas que precisam expressar suas angústias sob pena de que a fragilidade da mente ou instantes de fraqueza maior possa ferir de morte a existência.
Os cantos desses cisnes são como melodias perpétuas, bonitas, que ecoam nas paisagens do mundo onde há solidariedade, humanismo, compreensão, cooperação e respeito e amor ao próximo. E quando estes cisnes se vão não serão lembrados pelas obras imediatamente anteriores à sua morte, mas sim pela falta que fará aqueles cantos docemente ouvidos ao longo dos anos.
Pessoas assim fazem a diferença na vida. São absolutamente diferentes daqueles que precisam dar provas que fizeram alguma coisa boa na vida para serem lembrados, reverenciados, pranteados. Os que agem como que silenciosamente para deixar marcas no seu tempo serão reconhecidos pelas sementes que deixaram cair pela estrada enquanto seguiam para plantar uma grande obra através de pequenos gestos.
Em cisnes assim não há morte que os torne esquecidos. Não precisa que tenha sido um grande músico que deixou como herança para a posteridade uma obra de reconhecido valor, nem um artista que expressou toda a sua genialidade na sua última representação no palco, na televisão ou no cinema, nem o mecenas que ao se ver abatido pela doença resolveu deixar sua imensa biblioteca para que o povo tenha acesso às grandes obras da literatura universal. Os exemplos seriam intermináveis, mas não precisaria de um gesto assim para que o reconhecimento se torne necessário. Pequenas ações pela vida às vezes são mais importantes do que isso tudo.
Contudo, somente quando um cantar de cisne é ouvido é que se pode ter a certeza de que a vida foi realmente vivida. De que adianta ter sonhado e brincado tanto na infância, ter sido um verdadeiro malabarista no circo da juventude, ter sido um profissional realizado na vida adulta e na maturidade, se quando chegou a velhice não haveria qualquer olhar pra trás que dissesse ter valido a pena os anos vividos?
Cisnes só cantam nos lagos das realizações. Ora, como diria o poeta Francisco Otaviano em "Ilusões de Vida": "Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu/ Quem não sentiu o frio da desgraça/ Quem passou pela vida e não sofreu/ Foi espectro de homem - não foi homem/ Só passou pela vida - não viveu".
E Vinícius e Toquinho, em "Como Dizia o Poeta", acrescentariam:
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração,
Esse não vai ter perdão.
Assim, a par de poder existir vida após a morte, ou a morte renascida em outra vida, verdade é que o canto do cisne só vale para esse momento, para a vida que se vive sem ser um tormento, pois nela passou e agiu, fez e transformou, disse porque estava existindo, realizou o que a paixão pediu e o coração mandou, e morte alguma poderá sorrir porque simplesmente alguém deixou de existir.
Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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