quarta-feira, 27 de abril de 2011

DIA DO ENGRAXATE


Em meio a todo o concreto do centro da cidade, o engraxate forja o brilho que falta no mundo. Cabisbaixo, trabalha em silêncio, enquanto o cliente lê o jornal, indiferente à sua existência. Homens de terno e sapato de couro, que raramente percebem a importância desse trabalhador incansável.

Rubem Braga percebeu a poesia da atividade do engraxate, e nada melhor que poesia para homenageá-la:

O ANJO ENGRAXATE

Como soubeste, ó anjo da rua,
que tenho os pés de crocodilo?
Como soubeste, ó anjo da rua,
que o meu sapato já foi lacustre?
e que preciso hoje ficar ilustre?
Como soubeste, ó anjo da rua,
que eu quero ter (pra que ninguém,
hoje, me eclipse) os pés de barro
resplandecentes como os dos anjos
do Apocalipse?

II

Pequei com alma, pequei com o pensamento,
pequei com o corpo. só não pequei com os pés.
Vivo de pés no chão e cabeça no céu.
(No céu ou na lua?)
Ainda agora senti certo gosto de céu
como se houvesse beijado uma santa, na rua.
Tenho os pés inocentes mas em minha cabeça
moram os meus pecados azuis e dourados.
Nem há mal algum em ter pés inocentes.
Pois Cristo não lavou os pés aos seus apóstolos?
Vivo de pés no chão e cabeça no céu.
Mas não é o meu chapéu que ponho atrás da porta
na noite de maior inocência.
São os meus sapatos.

BRAGA, Rubem (org.) Cassiano Ricardo - Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p.71-73.

Fonte: Nilc-icmsc-usp

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