quarta-feira, 3 de agosto de 2011

SONHO EM CORES


Em 3 de dezembro de 2010, entrei no elevador, em direção ao trabalho. Porém não foi um dia comum. Em pequeno espaço, as pessoas tinham a difícil tarefa de se acomodarem a fim de chegar ao destino: uma de duzentas e vinte salas no Harmony Medical Center, para cuidado da saúde física ou emocional. Pedi a alguém que apertasse o botão do andar aonde eu ia, pois não alcançava fazê-lo.

Em seguida, ouvi uma voz suave e amena atrás de mim: “Doutora, a Senhora lembra-se de dez pessoas que bateram a sua porta? Talvez nem saiba, mas estão todas trabalhando e devem isso à Senhora”. A voz era de jovem pai, com uma criança nos braços. Reconheci o líder do grupo que, em 2007, veio a meu consultório, trazendo nove pessoas com ele. Queriam ser ouvidos. Todos insatisfeitos com o resultado de uma das etapas do concurso público municipal, avaliação psicológica. Todos considerados inaptos para desempenho das funções anunciadas em edital e vindo do profissional que não pode atendê-los. Todos com algum tipo de deficiência.

O exíguo tempo entre o anúncio do resultado dos concursos públicos e o prazo dado para o candidato entrar com recurso administrativo ou judicial, normalmente de dois dias, é um desafio para nós profissionais: às vezes, temos apenas o final de semana para realizar retestes; ou faltam testes no mercado local; preparar novos laudos com as devidas exposições de motivos ou justificativas pertinentes, em tempo hábil, é tarefa difícil, pois cada caso é único, e diversas são as peculiaridades individuais. Os candidatos, não tendo assumido o emprego, nem sempre dispõem de meios para custear os honorários dos profissionais. Enfim, as dificuldades são evidentes. Porém eu tinha grande aliada: a certeza de que faria tudo que estivesse ao meu alcance para compreender o que havia acontecido com as pessoas que me confiavam o sonho de ter acesso ao mercado de trabalho.

Depois de ouvi-las e aplicar instrumentos que me permitiam fazer prognósticos de desempenho no trabalho, de posse das procurações a mim confiadas, fui fazer as vistas dos testes (periciar os testes) que a Comissão de Avaliação Psicológica, responsável pelo concurso, havia aplicado. Convenci-me de que as pessoas eram capazes sim de desempenhar as funções do edital. A minha preocupação, como profissional psicóloga, foi me despir do estigma do preconceito que, infelizmente, sem permissão consciente ainda ronda a nossa volta, em pleno século XXI. É verdade que temos limitações para cumprimento da legislação brasileira em vigor. Quando o assunto é igualdade de oportunidades para todos, faltam testes específicos para o cego, por exemplo. O óbvio é que não podemos considerá-los inaptos com base numa simples entrevista. Se assim fosse, usando o mesmo raciocínio, para ser justos, também poderíamos considerar pessoas aptas com esse mesmo recurso. Vale registrar que, na América do Norte, existem pelos menos quatro instrumentos psicológicos, amplamente utilizados, com esse segmento da população.

Entre discussões e divergências de opiniões com a Comissão de Avaliação Psicológica, prevaleceu o bom senso. Os dez estão trabalhando sim, segundo afirmou o líder do grupo, no elevador apinhado de gente, na sexta-feira que marcou minha carreira e minha vida. A Organização das Nações Unidas adotou o dia 3 de dezembro como Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, por meio da resolução A/RES/47/3, esperando que entidades mundiais da área passem a comemorar a data, gerando conscientização, compromisso e ações que transformem a situação desfavorável de exclusão de muitas pessoas no mundo. Estou fazendo a minha parte. Peço desculpas pela falta de modéstia, mas tenho um compromisso com a minha consciência. E lembro: a omissão num caso desses é mais grave que a pouca modéstia, e naturalmente, inadmissível. Temos dez pessoas trabalhando. Temos uma com cegueira vivendo o sonho em cores. Um apogeu de emoções.

Finalizo esta escritura lembrando o artigo 35, incisos I e II, $ 30 do Decreto Lei N 03.298, que regulamenta o acesso ao trabalho das pessoas com deficiência, assegurando o direito do candidato a apoios especiais quando em concurso, desde que informadas no ato da inscrição. Entendemos que a concessão de recursos e cuidados aos segmentos situados em desvantagem objetiva, frente aos demais, não poderá ser caracterizada como simples favorecimento a parcelas da sociedade, mas sim, como criação de condições necessárias para que todos estejam em situação objetiva de igualdade de oportunidades. Falamos de direitos humanos.

LINDA LEMOS


Autora: Maria Linda Lemos Bezerra psicóloga, membro fundador do Conselho Estadual de Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado do Ceará – CEDEF-CE. Natural de Várzea Alegre – CE. Membro efetivo da Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará - ALMECE, ocupando a Cadeira N0 63 e da Associação dos Escritores Cearenses - ACE. (contato: lindapsy03@yahoo.com.br

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