quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Olhos de Tia Clara (conto)



Faces tão branquinhas quanto a albunina que cobre a gema do ovo. A comparação deve-se seguramente ao análogo nome: Clara. Claríssima nas expressões quanto quanto nas atitudes. Humor generoso. Tão generoso ao ponto de apostar a agilidade de um gato e submeter-se à fúria da gravidade num pulo de alguns poucos metros de altura. Pulou. Perdeu. Criança adulta. De serelepe estilo confundia-se entre tantos no jogo de esconde-esconde, cabra-cega, boca-de-forno e por aí afora. Era remédio para os males juvenis mas que tinha seus efeitos colaterais entre os preconizadores dos bons costumes da maturidade. Nesses casos fingia-se surda e míope. Fez-se visagem. De alva-brancura, um lençol que já cobriu defuntos, no breu da noite dispensou assíduos frequentadores que na busca de regozijos esqueciam convensões familiares quanto ao comportamento e horário de retorno ao lar. Uma noite de sonhos em comoção. "- Negue-se no dia seguinte a participação e convença-se a todos do total desconhecimento do fato. Isso dará sustentação aos exageros e fascínios de crédulos". - Palavras claras!
O mundo com seus arranjos e desarranjos, tudo é magnífico, - secretamente ridículo, - compunha o quadro literariamente perfeito. - Clara imperfeição de Clara! - As meninas escondem bustos caroçosos. Os meninos engolem um trovão. Perda de elasticidade das fibras metabólicas estampadas no claro rosto, assim como, a brancura serena e involuntária da sua fronte sentenciam Tia Clara a dedicar maior e depois total atenção aos deveres da idade. Dura Pena! -"Deus também, aje sempre de má fé. Sempre e sempre a esconder suas segundas intenções". - Palavras claras!
Improdutividade cansativa. Funções alteradas pela ausência de hormônios. Rugas. Sonolência. Osteítes. Perdas musculares. Ostracismo. Lembranças.
Temporárias inconveniências? Não! Crises de irreverência. - Palavras não claras!
Dias houveram em que nos dividíamos entre o choro melancólico por não desfrutarmos da paz silenciosa necessária á chegada do sono e o riso disfarçado pelo repetido movimento mandibular e o som esférico emitido por Tia Clara. Soava como uma espécie de relaxamento vocal ou um daqueles estéreis e bem-humorados caprichos tão seus. O certo é que aquele -humm ã..., humm ã..., humm ã... - ativava a todos nós. Visitávamos vizinhos, revíamos as plantações do quintal, só não nos queixávamos, isso prolongaria o nosso mau-estar auditivo.
"O silêncio imposto acalenta o físico deteriorando a alma". - Palavras claras!
Noutros dias Tia Clara tornava-se dócil como nos tempos em que tomava parte nas nossas brincadeiras. Num desses dias confidenciou-me: - quando atingimos uma certa idade parece que o mundo é outro mundo. O que percebíamos com estúpida beleza vai tornando-se feio e mais feio e de tão feio atinge a mediocridade e o ridículo. As coisas, os lugares, os afazeres, as pessoas, os seus gestos, as suas ações, carecem da nossa compreensão e boa vontade para suportá-las e até da nossa natural hipocrisia para creditá-las à vida e às suas leis naturais. O natural que desmorona, que nos torna insuportáveis nos dizeres, que desfigura os nossos contornos e que nos torna ridículos pelos conhecimentos adquiridos pela observação, a experiência.
- "Somos repulsivos interna e externamente e só a experiência é capaz de enxergar".
- Palavras claras!
O barulho da água que escorre da torneira aberta aguardando os últimos detalhes do barbear de três dias silencia o restante da casa. Silencia a rua. Silencia o mundo. O sinal dobrado póstumo do dia anterior enfastiou nossos ouvidos.
Detenho-me diante do curioso e extrovertido espelho a apontar-me a sordidez dos detalhes: rugas; olheiras; ulcerações faciais; tristeza no semblante. Penso: - Tudo que vi hoje estava diferente. Pessoas tristes cujas faces intrigantes não inspiraram confiança; objetos, todos sujeitos a restaurações; sentimentos vulneráveis. E concluo a contemplação numa reflexão dúbia: já vejo com os olhos de Tia Clara?
- Pensares obscuros!


Assis Costa


Essa Clara é minha bisavó materna

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