quinta-feira, 16 de setembro de 2010

PALAVRAS TRISTES DO CAPITÃO


Naquele ano de 38, quando o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, deixou as terras hostis e solitárias do Raso da Catarina, na Bahia, e veio cortando caatinga, se entricheirando e combatendo a própria sombra e a força das volantes por trás de toda moita, pisou nas fronteiras do estado de Sergipe e adentrou pelas suas veredas para prestar contas ao destino, estava um homem gritando por dentro e que precisava ouvir a si mesmo.
Quando pisou no sertão sergipano, o Capitão de caatinga e sol nem imaginava que ali seria sua última pousada em vida, seus últimos dias na terra a seus pés estremecida pelo mistério da vida e da morte. Não imaginava que brevemente seria tocaiado e morto, seria vítima da volante no seu eterno encalço, seria vítima do próprio contexto que criou e como ninguém soube representar.
Se não imaginava que isso viesse a acontecer, tinha certeza de que nas terras sergipanas, naquele local escolhido para descansar, poderia refletir sobre o seu futuro, sobre o destino que queria para si dali por diante. Se nada pudesse ser feito, ao menos que os dias e as noites fossem menos assombrosas.
Ora, já estava com quase quinhentos anos, pois cada ano que se passa combatendo por entre mandacarus, quixabeiras e xiquexiques, é como se fosse vinte anos na vida um homem. O corpo estropia, as forças vão sumindo, os objetivos deixam de ter validade. Apenas a vida passa a valer alguma coisa. Mas estava velho demais, com 41 anos, mas um corpo alquebrado de mais de quinhentos anos.
Já conhecia bem a região. Volta e meia estava de retorno ao lugar. Gostava de beira de rio, pois numa hora de fuga é mais fácil encontrar caminho pela terra e pelas águas. Ademais, a Gruta do Angico, ali nas beiradas do São Francisco, era o local mais apropriada para que ele e sua Maria Bonita, bem como os demais cangaceiros que se faziam presentes no bando, se acomodassem à vontade, vez que já conheciam bem aquelas camas de pedras e aqueles candeeiros enluarados. De um lado o rio, entre eles as margens de mata rasteira, de outro lado as caatingas e as serras e ainda no alto a esperança pela proteção de Deus.
Na Gruta havia o lugar reservado para o Capitão e sua bem amada, dentro da fenda aberta em plena rocha. Ali cabia os dois e seus apetrechos. Os outros cangaceiros, homens e mulheres, se arranjavam como podiam ao redor; os casados com suas esposas e os solteiros em grupos separados. Estrategicamente separados para ter ampla visão do lugar e vigiar qualquer suspeita da aproximação do inimigo. O inimigo estava por perto sempre; sempre à espreita.
No dia 27 de julho, desde que levantou cedinho, fez suas fervorosas orações e tomou pé da situação, o Capitão passou a carregar pelo resto do dia uma vontade danada de se separar por instantes do bando, e até de sua Maria Bonita. Sua vontade era sentar em alguma pedra, montanha ou barranco para pensar sobre a vida, refletir sobre sua pessoa, pensar em seu destino, prestar contas a si mesmo de um montão de coisas que há muito vinham se espalhando pelo seu inconformado espírito.
Nesse tormento, ao entardecer desse dia se afastou do grupo, pediu que ninguém o acompanhasse nem fosse até lá importunar onde quer que estivesse, e foi pra beira do rio, caminhou até onde a alpercata molhava, tocou as águas com a mão e depois se benzeu, lavou os óculos há muito enuviados, molhou o rosto de água, recuou um pouco e foi sentar bem no local onde havia uma pedra grande, de onde passou a olhar o horizonte e tudo ao redor como jamais havia feito em qualquer outro instante da vida.
A cor bonita do entardecer refletia no rosto do Capitão dando-lhe ainda mais majestade, mais brilho, mais veracidade. Contudo, no seu olhar e seu íntimo era um homem cansado e cheio de dúvidas, pensando em como dar um basta naquilo tudo para se tornar gente novamente. Isso era o que pensavam dele, como um bicho feroz, mas naquele instante um frágil ser humano com sua lágrima e sua voz solitária:
"Tenho fé no Senhor, meu Deus, que tanto tem perdoado pelo que tenho feito e os outros inventado que fiz. De qualquer modo, perdoai por tudo, meu Deus, pois sou apenas um homem com o destino traçado para viver no sofrimento. Tenho mulher e esposa que não posso colocar numa casa para viver; tenho filhos que não posso ter ao meu lado para uma brincadeira e um cafuné. Tenho amigos que não posso prosear ao entardecer na sombra de uma árvore, sentado num banquinho e vendo calmamente a vida passar. O pior, santo Deus, é que tenho uma vida que não posso viver. Quem disse que o meu viver é vida, matando pra não morrer, correndo de um lado pra outro, fugindo da própria sombra e sem ter paz e sossego em tempo algum e em lugar algum? Quem sou, senão um homem entristecido que não pode chorar uma só lágrima? Troco tudo que tenho, o que conquistei e o que inventaram pra mim, por uma vida digna, por um instante de paz e sossego. Trocaria minha patente de Capitão, minha coragem, minha fama, minha revolta, tudo que tenho, por qualquer coisa que me fizesse viver como pessoa comum..."
Por trás das lentes do óculos do Capitão, os olhos molhados deixaram uma lágrima escorrer. E ele continuava falando sozinho, conversando com seu pensamento:
"Jamais hei de dizer meu Deus, meu Deus, porque me abandonou. Isso não, meu Senhor, pois se estou ainda vivo é graça a sua grande bondade. Mas poderia ter sorte melhor, isso sim. Como diz a bíblia, que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. Não há nada de novo debaixo do sol. O que sou, então, senão um Capitão afadigado e cansado demais de viver debaixo dessa lua e desse sol. Mostre-me um caminho, meu Deus, pois o Capitão Lampião só pensa em ter uma chance de ser novamente Virgulino e viver feliz ao lado de sua Maria...".
Ouviu passos e se virou rapidamente. Era Maria Bonita que vinha chegando. "Venha cá Maria, sente aqui". E foi a única vez que Maria Bonita viu Lampião chorando.
No dia seguinte, logo ao madrugar os dois seriam mortos. A sina cangaceira estava terminada. Foi-se o triste Capitão.

Rangel Alves da Costa*


Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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