sábado, 30 de outubro de 2010

CARTA PARA QUANDO EU FOR VELHA


Um dia, e não deve demorar muito, vou notar fios brancos no meu cabelo. Pior: um dia, vou procurar se restaram alguns fios preto no meu cabelo. Vou sentir algumas dores nas pernas, ou nas costas, ou a carga da vida será pesada para mim.

E, se eu pudesse deixar um recado para essa mulher que eu serei então, eu pediria, talvez, para que ela fosse doce. Quando eu for velha, desejo manter alguma alegria. Ainda que a amargura me seja tentadora, que eu possa ver alguma beleza na vida.

Que eu possa ver beleza em mim mesma, mesmo que meu rosto esteja amassado, os olhos um pouco apagados, que eu me lembre do quanto achava ridículo as mulheres lotadas de botox e não caia na armadilha de esticar-me toda para tentar ser aquilo que não preciso mais ser. Que eu me lembre desse tempo de hoje, e aceite essa outra forma de beleza, senão sem dores, com muita dignidade.

Que eu tenha mãos firmes para passar base e, quiçá, delineador. Que eu saiba o valor e o momento de um bom perfume, de um bom penteado, de uma roupa bem cortada. Que eu não caia na tentação de vestir-me como uma velha ou – pior – que eu não caia no ridículo de usar roupas parecidas com as das minhas netas.

Que eu não implique com a vida, com o tempo, com o meu companheiro. Aliás, se ele se tornar irritante, diabético, surdo ou o que quer que seja, desejo me lembrar das promessas antigas, do companheirismo de uma vida, das inúmeras vezes em que eu, jovem, fui irritante e surda, e ele esteve ao meu lado. Que eu possa relevar as frases repetidas, que eu tenha paciência para as pequenezas dele, e procure evitar as minhas. Que eu saiba rir da vida, de mim mesma, de nós dois. Mesmo que as piadas sejam péssimas; as gargalhadas não deveriam se tornar tão raras quanto as caminhadas ou as corridas. Que eu possa, ainda, fazer meu companheiro rir, mesmo que me dê uma preguiça danada.

Que eu não cobre dos meus filhos, netos, amigos, mais do que eles me ofereçam. E que, em sendo oferecido pouco deles a mim, que isso não me amargure; mesmo que seja infinitamente injusto e cruel – e deve ser –, que eu tenha aceitação e alegria. Que eu tenha assunto e conhecimento, que eu tenha prazeres e encantamentos, sabedoria e discernimento.

Que eu me mantenha lendo bastante, para que eu possa achar assunto nos jornais, nas revistas, nos novos e nos velhos livros. Se não me restar amigos, ou amores, que o conhecimento me salve de uma rotina infinitamente chata e comprida.

Que eu aprenda a apreciar flores, comida, música, ou qualquer uma dessas coisas oferecidas em abundância pela vida, porque, assim, mesmo que me falte o resto, ainda terei o gosto ou o som do que me faz feliz.

E, enfim, se eu pudesse deixar um último recado a essa velhinha que eu serei, eu pediria que ela lembrasse da menina que foi um dia e que fosse gentil com essa moça, com seus próprios erros, acertos, escorregadas e tentativas vãs. Que ela não fosse muito rígida com a vida, e nem com essa jovem abusada e tola que, um dia, sentou-se num jardim ensolarado para deixar-lhe uma pequena carta, cheia de palavras e idéias que, talvez, um dia, não façam, absolutamente, o menor sentido.

Kika Coutinho

Fonte: Crônica do Dia

Um comentário: