domingo, 24 de abril de 2011
A TROCA
Abri minha caixa de e-mails nas últimas horas de sexta feira, após uma semana de trabalho, véspera do “Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência”, 21 de setembro de 2010. Entre as notícias do dia, uma me chamou a atenção: matéria escrita pela médica Luciane Nascimento Lubianca, publicada no Jornal Zero Hora, Porto Alegre. O título: “Por um olhar mais generoso”. O conteúdo, como segue.
“Ser mãe ou pai de uma criança especial” exige muita paciência. Ser humano não é fácil. Ando com meus filhos, que têm dificuldade motora, por todos os lugares. Por mais difíceis que sejam as condições de acesso, insisto em não me deixar intimidar pelas barreiras impostas pelo que a vontade possa superar. Pelas ruas, a toda hora, vemos carros estacionados em rampas de acesso e cidadãos saltitantes desembarcando em vagas de estacionamento reservadas para deficientes físicos. Meus filhos reclamam: “Mãe, liga para a polícia!”. Repito sempre o mesmo discurso sobre ética e respeito aos direitos de todos.
Além dos obstáculos físicos, existem os olhares contundentes de estranheza. Em vários momentos, pessoas depositam, sem delicadeza, sua curiosidade sobre o que não lhes é familiar. Viram o pescoço mirando as pernas titubeantes das minhas crianças e eventualmente tascam: “Ele é deficiente !!!”. Guilherme cumprimenta a todos que o olham. Na tentativa de protegê-lo, já expliquei várias vezes que não devemos responder a todos os olhares com um “oi”, e, na rua, devemos cumprimentar somente aqueles a quem conhecemos.
Certo dia, durante espera para corte de cabelo, ele brincava com cubos, tentando colocar um sobre o outro, sem muito sucesso. Eu estava um pouco distante, com outro filho, quando percebi uma senhora sentando ao seu lado, fitando-o fixamente. Ela de boca aberta e com um olhar agudo, meu filho concentrado na sua missão aparentemente impossível. Após alguns minutos, de súbito, Guilherme virou-se, olhou para a mulher e disse: “Oi, tudo bem? Te conheço, né? !”. A senhora desconcertada saiu rápido, sem responder nada, como se ele não devesse ter percebido o óbvio.
Aos olhares indiscretos, lembro que a sensibilidade daqueles que parecem nada perceber permanece conectada, independentemente do grau de comunicação que pensamos poder ou não existir.
Meus filhos têm sete anos e paralisia cerebral. Não correm, nem pulam como a maior parte das crianças. Inicialmente, pode ficar a impressão de que são pequenos menos alegres, não é verdade. O que normalmente deixaria a maioria deprimida, os impulsiona. Desde cedo já sabem que ser parte do usual não é o único meio possível de ser feliz. Como todas as mães, quero um mundo melhor para meus filhos, por isso escrevo, compartilhando meu aprendizado. Aos olhares que acolhem, mando meu terno abraço, aos que tem piedade, meu desejo de crescimento. E para aqueles que acham fazer parte de um mundo paralelo, solicito, pelo menos, um olhar mais generoso”.
Num ímpeto solidário, respondi à autora da matéria:
Sei exatamente o que você e seus filhos passam, pois já senti olhares que variavam da rejeição, pena, espanto, medo à admiração. Tenho um filho com “déficit” intelectual, espectro autista. Hoje adulto, tranquilo, socialmente adequado ao "mundo dos normais". Para chegar até aqui sofri, chorei, briguei, lamentei a mediocridade de alguns, senti pena da atitude mesquinha de tantos outros ou simplesmente os ignorei. E assim, vivi estes 30 anos, ao lado de um ser humano sensível, amigo, que me fez crescer e motivou a vencer obstáculos que cheguei a julgar intransponíveis. Agradeço viver ao lado de uma pessoa que me possibilita viver a vida em toda a sua plenitude, compreendendo e aceitando as diferenças individuais, e até louvando-as. Aprendi não só a entender mas, principalmente, respeitar a diversidade humana. Com ele aprendi que o silencio pode causar um barulho imenso; que a visão independe dos olhos; que as mãos, bem como os olhos e o coração têm o poder de falar bem alto quando necessário. Aqueles que não puderam nos alcançar, infelizmente ficaram para trás. Perderam-se em meio à curiosidade, indiscrição, pobreza de espírito, de sentimentos, enquanto nós, pais, olhávamos para a frente, em busca de esperança e alegria, porque em nossos corações não há espaço para sentimentos negativos. Para nós, o mundo é muito mais do que um olhar indiscreto, atrapalhando o brincar de uma criança feliz.
E a troca de experiências continua com o registro de outra mãe, a auditora fiscal Sandra Tavares:
“Sei como a autora se sente. Aqui em casa somos quatro: eu, meu marido e os meninos: Guilherme e Alexandre. Alê, como a maioria já sabe, tem Síndrome de Down e meu marido (alguns devem lembrar) teve um AVC, em 2008, que o deixou com algumas seqüelas. Ele está sem os movimentos do lado direito do corpo. Caminha com uma órtese na perna e uma bengala. O braço direito fica livre, mas como está sem movimentos percebe-se esse fato só de olhar. Então, você imagina o que acontece quando saímos os quatro para uma praia ou a um restaurante, por exemplo. A chegada é sempre triunfal. É uma chuva de olhares curiosos e invasores. Alguns disfarçam com uma olhada rápida, enquanto outros insistem em continuar investigando, até que também passam a ser investigados. Por mim. Rssss. Mas, na maioria esmagadora das vezes, não ligo (já estamos acostumados) e passamos simplesmente a aproveitar nosso momento família”.
O que podemos concluir das três experiências relatadas é que no século XXI, as barreiras atitudinais são obstáculos a serem superados para que se possa sonhar com uma sociedade mais justa, humanizada, com pessoas incluídas social, econômica e politicamente no processo de desenvolvimento do país e do planeta
Linda Lemos
Enviado por Magnólia Fiúza por E-mail
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