A primeira Maria é das dores...
Ela passa o dia a assoprar dolências, tentando diluí-las em esperança, afogá-las em bálsamo. Acredita-se que, diferente do rotulado, ela aprendeu a lidar com a dor de um jeito único. De um jeito de engolir sem engasgar com lágrima, de não revidar, mas sim aguardar até que a espera se torne recompensa, e que as dores sejam neutralizadas pela felicidade, que bem sabemos, é passageira, não é companheira feito a dor, mas tem um poder sem igual de arrancar sorriso da gente, de fazer graça com a tristeza.
Maria das Dores tem um jardim de tulipas no quintal de sua casa. Dia sim, dia não, caia chuva ou faça sol, ela se deita entre as flores para doer. E de cara com o céu, doendo o diabo de tanto sentimento, esvazia-se em condolência, despedindo-se das dores, tendo o abrandamento como recompensa.
Maria é das dores porque sabe deixá-las partir.
A segunda Maria é dos anjos...
Quando deita a cabeça no travesseiro, faz uma oração longa e emocionada, na qual agradece as bênçãos e solicita milagrinhos, para que a vida não passe em branco. Para ela, Deus mora em tudo e em todos, mas não é mulher de catequizar. Tem por sagrado o direito do outro de não crer no que ela crê. Então, fala a respeito apenas quando lhe perguntam. Porém, dependendo da forma como lhe perguntam sobre a sua espiritualidade, defende-se intelectualmente, alegando ser apreciadora da obra de Michelangelo exposta na Capela Sistina. E tão requintada é a sua eloquência, que nem desconfiam que ela jamais tirou os pés da própria cidade, o que dirá visitar outro país.
Maria dos Anjos tem uma loja de badulaques, anjinhos de enfeite, CDs de segunda mão (ou segundo ouvido?), que fica naquela rua arborizada como raramente vemos nas cidades grandes. Lá ela cultiva mil facetas da sua crença na vida, nas escolhas do ser humano, no direito de ser e estar de bem com a própria verdade. Livros espalhados em prateleiras, sobre mesas, até empilhados no chão, representam, para ela, histórias que ela poderia ter vivido, tivesse nascido outra. E o que não sabem sobre ela, sobre os que lhe acompanham, é que apesar de ter escolhido a religião da vida, dos homens e seus destinos diversos a desembocarem em um mesmo futuro, que pode ser contado, de acordo com a forma como cada um lida com a sua biografia, é que na noite já alta, às vezes depois da oração, ela se levanta e vai até a sala, liga a televisão. E depois do play se inicia o filme que ela queria que fosse sobre a vida dela. Por detrás de todas as máscaras, ela é apenas uma mulher apaixonada pelos anjos de Wim Wenders.
Maria é dos anjos – cinematográficos e onipresentes – porque sabe que a vida também nos dá asas para voos que jamais imaginávamos poder voar. E ainda assim, voando voos inimagináveis, há um prazer sem igual em voltar, em sentir a terra debaixo dos pés. Em abrir as portas do lar.
A terceira Maria é da graça...
Enquanto caminha, os pés dançam no chão, mas de um jeito miúdo, que confunde o espectador, ele que se vê crente de que a moça simplesmente levita, e escorrega pelas bordas da realidade. Enquanto fala - a voz que mais parece música preferida -, ela diz tantas levezas que a gente se sente engalfinhar pela religiosidade gritada pelo seu coração apaixonado por horizonte.
Maria da Graça é dona de uma bodega, no centro de qualquer lugar. Ela enfeita as mesas com cores das flores, das louças, dos panos, que o lugar mais parece uma caixa de lápis de cor. Soluça quando gargalha, faz um escarcéu quando precisa de cafuné, adora os vestidos e as cantigas de roda. Às vezes, fica em silêncio, mas apenas para escutá-lo confidenciar-lhe desejos. Depois grita, como se tivesse à beira do abismo, o corpo curvando, cedendo à profundidade do medo. Mas é só coisa pra espantar desassossego, porque depois ela se espreguiça, côa um café, mordisca pão caseiro, sente-se em casa.
Maria é da graça porque não se entrega a desespero que seja.
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