sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Infancia na casa branca
Ficava olhando para o fundo do cacimbão de tijolos vermelhos, atravessado por troncos de madeira nodosa, e povoado por águas escuras e distantes. Catava algumas pedrinhas e as jogava, avaliando o tempo gasto até ouvi-las: o baque surdo, as vozes escuras, nas águas pesadas que se debatiam em ondas de encontro à parede lodosa. Entre as falhas dos tijolos, sapos e rãs descansavam. Contava-se da história de uma jovem que caiu naquela solidão profunda, onde foi engulida. Uma história imprecisa, mal contada, que de tão antiga parecia até mesmo uma fábula. Como a de Maria de Bil, a da capelinha branca no alto da serra. Difícil imaginá-las na realidade daqueles dias tão pacatos e ingênuos, logo pertenciam a um outro reino, o das histórias escabrosas, o reino da fantasia.
Mas o cacimbão ficava em meio ao algodoal, onde era alcançado por uma trilha estreita de terra e pedregulhos. Para nos protegermos das cobras, cobríamos em pouco tempo esse trecho, repetindo entre os dentes a oração: “São Bento e água benta. Jesus Cristo do altar, O que estiver neste caminho, Arrede e nos deixe passar...” A trilha também nos levava, para além do cacimbão, a uma mata de árvores secas e retorcidas, cipós, moitas espinhentas de jurema, unha-de-gato, e mofumbos. Dessa mata tirávamos a madeira para construirmos baladeiras, badoques, arapucas e cavalinhos de pau. Os galhos para os cavalinhos tinham de ser verdes, para que com a ponta da faca talhássemos desenhos em toda sua extensao, cavalinhos malhados, garbosos, pedaços retos de pau, com rédeas de cordão, em que montávamos e disputávamos corridas.
A casa era caiada. Foi construída numa pequena elevação, de um lado dava para a propriedade, e do outro encostava-se em estreita e sinuosa estrada de areias brancas. À sua frente e também na traseira pedaços da propriedade se aproximavam da estrada, envolvendo a casa em U. Era uma casa de tijolos, quadrada e de paredes grossas como tantas outras, repetindo o estilo arquitetônico da época. Ela se ajeitava pesadamente sobre uma calçada alta de pedra, que lhe avarandava. Tinha piso de tijolos, com exceção da sala estar, de cimento frio. Mais quatro quartos de dormir, uma sala de jantar, cozinha e dispensa amplas, completavam o corpo da casa. Distante da casa, no terreiro, havia um banheiro, com pequeno espaço para banho de pote e um vaso sanitário, que descarregava numa fossa escavada por baixo.
Da outra calçada lateral da casa branca divisava-se a manga. Primeiro o curral e um pé de cajarana. O curral de cerca alta de pau-a-pique, com um mourão central. O pé de cajarana ao lado, onde parecia que sempre esteve, com tronco curto, grosso, resinoso e galhas que se espalhavam tortuosas, quase a tocar no chão, e que ficavam carregadas de cajaranas doces e madurinhas. Trepados em seus galhos podíamos assistir o movimento do gado no curral. Gado lento e silencioso, manso, que não fora o tilintar de chocalhos e mugidos ocasionais, poderiam passar despercebidos. No entardecer cada mugido mais parecia um gemido de entristecer.
Mas seguindo em direção à manga, depois do curral, em linha reta, havia um juazeiro da mais fresca sombra. Mais para frente dois pés de cajás, depois dos quais corria o riacho das marizeiras. Era seco a maior parte do ano, mas no tempo das chuvas, enchia-se de água vermelha, barrenta, até transbordar, inundando as terras baixas. Depois do riacho, vinha a serra cinza e inatingível.
Voltando à casa branca, nos seus fundos havia um pé de Marí, de sombra ampla e fresca. Nessa sombra: terra frouxa, areia branca, estradinhas construídas, pontes com esmero projetadas, precipícios, ladeiras sinuosas, cidades de pedras...Carros de caixas de fósforos, cheios de terra, puxados por cordão. Boiada de barro: vacas de chifres longos, touros majestosos, bezerros, cavalos puros-sangues, selas com estribos, vaqueiros de chapéus garbosos e gibões, e até mesmo com esporas nas botas. Horas a fio brincávamos enfeitiçados nesse mundo, até que vó branca chamava da cozinha para comer.
Um pé de fico benjamin bem frondoso e eternamente verde com raízes retorcidas e grossas, destacava-se no terreiro defronte à casa. Depois do terreiro um pedaço da propriedade onde se alternavam plantações de milho e de arroz. Quando tinha inverno, o milharal floria, e logo ficava cheinho de espigas, que depois se tornavam em bonecas, com cabeleiras fartas e coloridas, que minhas irmãs e primas enrolavam em pedaços de pano e faziam penteados.
Nas noites de lua acendia-se uma grande fogueira, com gravetos, pedaços de madeira e excremento seco de vaca para afugentar as muriçocas. Os adultos sentavam-se na calçada para conversar, e as crianças brincavam de esconde-esconde, adivinhações, e cantigas-de-roda, meninos e meninas, repetindo os diálogos cantados, aquelas cantigas tristes de tão belas, que pareciam até mesmo, no feitiço do momento, roubar de cada um, cada vez que as cantasse, um bocadinho a mais da infância.
Dentro de casa, lamparinas de querosene ardiam afastando as sombras. Ao redor de suas chamas, besouros diferentes voavam em círculos, de forma caótica, barulhenta, trombando-se entre si, nas paredes, e recomeçando depois do chão. Na escuridão pegávamos vagalumes com as mãos, e os colecionávamos por dentro da camisa abotoada.
No mato e se eram noites de inverno, onde brejos se formavam, cantavam grilos, coaxavam sapos, de todos os lados e de todas as vozes. Alguns, os sapos-cururus invadiam os terreiros e por vezes se aventuravam em casa, olhos esbugalhados, o papo bojudo e flácido enchendo e secando, dizia-se até que o seu mijo podia cegar. E dos pássaros noturnos,o medo, medo quando se ouvia o cantar solitário de uma coruja, medo do seu vôo que se dizia rasgando mortalha, medo das histórias de trancoso, contadas a meia voz, as crianças deitadas em redes que se entrecruzavam, silenciosas, olhos arregalados, cruzando os dedos, e puxando as varandas da rede sobre o corpo, para se proteger das almas penadas que rastejavam pelo chão. Depois era o sono profundo e, se Deus queria, embalados por uma chuva varando a madrugada, até que os mugidos das vacas nos currais, precedidos pelo cheiro de café vindo da cozinha, nos acordava para um novo dia.
Dr. Jose Bitu Moreno
copiado do blog do Sanharol
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