segunda-feira, 12 de abril de 2010
Os mosaicos de Thereza Leite
A narrativa de Maria Thereza Leite revitaliza a relação personagem/espaço, principalmente apresentando a casa de moradia como uma carapaça de proteção que o ser humano transporta e transforma enquanto a vida pulsa. Revitaliza porque geralmente se incrusta num ambiente onde antes a vida se esvaíra sorrateira ou trágica. Sua chegada é para a reanimação desses ambientes semimortos.
Thereza Leite escava na memória um monturo de imagens partidas e começa a emendá-las. Daí surge a casa de moradia. Mas dessa casa reconstruída surgem outras casas também desmontadas que necessitam da sua perícia para ressussitá-las. São imagens de pessoas depauperadas em colóquio com objetos em desuso que suplicam por revivências. São pedras, tijolos, jarros, vidrilos, cerâmicas, cristais, retratos e personagens, todos estiolados à espera de mãos milagrosas que lhes animem. É um cascavilhar do que foi varrido para o fundo do quintal. Esse monturo jaz na memória da autora que através da escritura vai unindo lascas de vidro, cacos de louça com frisos dourados, um pedaço de cristal partido, miçangas, uma branca perna de louça – só uma – da bailarina da caixa de música. Tudo o que fora jogado fora agora é reciclado pela memória, revitalizado.
São contos escritos geralmente em primeira pessoa, com final imprevisível mas fechado, com a personagem principal fazendo parte de uma saga urbana onde seu destino, muitas vezes está ligado ao destino dos outros, o que lhe subtrai o livre arbítrio. Mas no caso do primeiro deles, “Mosaico”, que dá nome a este seu primeiro livro, a personagem é uma deficiente que recupera a vitalidade na construção da casa nova, de uma nova carapaça. Clariceana nas suas intertextualidades, Thereza Leite se esmera na limpeza do texto como a personagem Dona Alzira se empenha na limpeza da casa. Quando Ana aparece, é para repovoar a antiga casa em desuso e como um “Bagdá Café”, ela reinstaura a vida na casa em desuso, como forma de reinstaurar a vida no seu corpo deficiente, ou como Thereza instaura na escritura, a recuperação da saga que retém na memória e que se não narrar se perde no ostracismo.
Há pois em Maria Thereza Leite, uma estética do esboço. Uma impressão sobre uma estrutura que desmontada vai dando lugar a outra. O texto é uma construção sobre fundações já existentes. Se o personagem tem uma deficiência ou uma doença incurável, é um ponto de partida para uma humanização dessa falta de alguma coisa. Impressionista na sua técnica de narrar, vai pintando o arcabouço memorial de onde herdou o quinhão mais precioso dos ancestrais: as narrativas do ambiente familiar. Todos os bens materiais foram dispensados quando da sua escolha de herança, só desejou tomar posse das histórias que o pai contava, da cor azul das coisas e das frases que escorregavam das páginas dos livros da velha estante. O pior dos seus tormentos seria pois um dia não ter mais o que contar e, principalmente, não ter a quem contar. Sua alma é sua história, salvar essa alma é narrar sua história.
Quando a chamamos de clariceana nos reportamos à atmosfera caseira que cria, mas principalmente, ao conto “A angústia das árvores do parque”, que nos remete ao Jardim Botânico carioca da nossa autora de origem ucraniana. Daí que o “travo amargo na boca”, “o silêncio desesperador”, a audição de “vozes ausentes”, “o dia nascido morto”, “os ossos molhados”, a tepidez da tarde, o bonde de Santa Tereza, os fios de ovos, os suores da meia idade, a conversa com as plantas, a tendência para um antropomorfismo, o consumir-se tudo, leva a uma proximidade das duas escritoras, como se conspirassem em conflito para nos fazerem suar com ambas, engordurarmos com sua leitura, no saculejar do bonde da vida. Thereza Leite escreve gordurosamente, sumarenta, uma narrativa quente e úmida, tépida. Pinta com palavras, suores, lágrimas e seiva que escorrem entre as frases.
“Quando nós éramos pássaros” é o belo título de um dos contos que poderia muito bem ser o título do livro. É nele onde mais pungente se torna o discurso do corpo flagelado pelo tempo corrosivo. A corrosão está pois em tudo, até na identificação das personagens, que geralmente são ele e ela, numa universalização denunciadora da corrosão generalizada. É por isso que a vida escorre liqüefeita pelos alicerces da memória quando as pessoas recolhem-se à prisão de si próprias, afogam-se sufocadas de si. A rotina da dona de casa é um dos profundos poços de afogamento da mulher de meia idade. E a estranha lucidez dessa mulher escorre do texto de Thereza a ponto de também sufocar o leitor que quer encontrar o fundo do poço e não encontra terra nos pés. O importante, portanto, em Thereza, não é apenas construir o texto, mas é se por nele e chocar na sua tepidez as histórias que também são dos seus leitores, são de todos nós.
Batista de Lima
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