quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Discurso de Nelson Hungria


por ocasião de sua posse como desembargador
do Tribunal de Apelação do Distrito Federal
em 16 de junho de 1944

O pequenino demônio da minha vaidade tem posto à prova, nestes últimos dias, o meu vigilante senso de autocrítica. Não fora o meu irrecusável testemunho de ciência própria sobre o pouco que valho, e já teria cedido à magia das tentações, que se vêm sucedendo num iterativo desafio à minha relutância em sobrestimar-me. A inclusão do meu nome na lista tríplice, a escolha que mereci do Presidente Vargas, a maré montante de manifestações de regozijo que tenho recebido desta Capital e dos Estados e, por fim, a magnificência desta solenidade teriam feito subir, a perder de vista, o balão de São João da minha vanglória, se o não retivesse no chão raso o iniludível conhecimento que tenho de mim mesmo.
O cristal da minha emotividade está vibrando intensamente à percussão dos discursos que acabo de ouvir. Corações amigos falaram ao meu coração. As palavras de Cândido Lobo tocaram-me no mais íntimo da alma, por isso que refletem a fidelidade de uma estima que, tendo começado no renhido de uma leal competição, não esmoreceu jamais no curso do tempo. Nos prélios que tenho travado pela vida em fora, não me lembro de adversário mais nobre que o meu antigo concorrente no ingresso ao quadro da magistratura local. Antes mesmo de terminadas as provas, não vacilava em transferir-me, num rasgo de fidalguia e generosidade, as palmas do triunfo, chamando-me, na dedicatória de um livro que me ofertou, “padrão de glória do concurso para pretor de 1924″. Vale recordar este episódio de raro cavalheirismo, quando, atualmente, parece praxe, na rivalidade das pretensões, o ziguezague dos conceitos desamáveis.
Idêntico ao que suscitou em mim a oração de Cândido Lobo é o agradecimento a Ribas Carneiro, o antigo redator judiciário da “Gazeta de Notícias”, que me curou de um crônico “complexo de inferioridade”, quando, montanhês desconfiado e bisonho, vim disputar o cargo de juiz na Capital da República. O jornalista de outrora é hoje o privilegiado depositário do bom humor da Justiça brasileira. E assim como faz germinar o cereal do bom riso no sáfaro terreno das contentas forenses, é também capaz de fazer passar os bruxoleios da minha candeia humilde por cintilações de lampadário palaciano.
A Bulhões Pedreira, o alquimista da palavra, quero também exprimir a minha gratidão, pelo jogo de luzes com que soube emprestar relevos à minha platitude. O segredo da sua oratória está na exuberância do seu coração, que se abre para o mundo numa festiva eclosão de primavera, a florir recantos humildes, a enfeitar soledades, a recamar vales obscuros e outeiros descalvados.
A Romão Lacerda, por último, também me confesso profundamente agradecido pela justeza com que soube ferir a corda mais delicada e vibrátil da minha sensibilidade. Enterneceu-me até o cerne d’alma a referência que fez a meus pais, e estou daqui a calcular a emoção que terá causado a minha mãe, heróica velhinha que me trouxe a indizível alegria de sua presença, hoje, nesta sala, para que fosse integral o meu quinhão de felicidade.
Meus senhores:
Venho substituir, no tribunal superior, a Martinho Garcês Caldas Barreto, a quem rendo neste momento, de espírito e ex toto corde, a homenagem da minha admiração. Praza aos céus que eu possa seguir-lhe os traços nesta casa, contribuindo, como ele, para manter as honrosas tradições de retidão, operosidade e descortino da justiça do Distrito Federal. Seu exemplo será para mim constante inspiração de uma justiça imparcial e discreta, sem medo e sem mácula, sem guizos e sem lantejoulas.
A minha investidura na desembargadoria, enfim alcançada, tem qualquer coisa do episódio bíblico do casamento de Jacob. Porfiei na conquista deste prêmio com o mesmo afinco do neto de Abraão no seu amor pela serrana de Haran. Servivit Jacob pro Rachel septem annis, et videbantur illi pauci dies proe amoris magnitudine (“Serviu Jacob sete anos por amor a Raquel, e foram a seus olhos como poucos dias, pelo muito que a amava”). Mas Labão, pai de Raquel, ao invés desta, lhe deu Lia, usando fraude. Para que lhe fosse entregue a sua querida pastora, ao fim da seguinte hebdômada, teve Jacob de trabalhar para Labão outros sete anos. Tamdemque potitus optatis nuptiis, amorem sequentis priori proetulit, serviens apu d eum septem annis aliis. E segundo os versos de Camões,
“… mais servira, se não fora
Pera tam longo amor, tam curta vida”.
O meu desejo sem posse durou quase três vezes sete anos, e o meu labor, nesse longo período, não foi propriamente o de tanger ovelhas nas suaves colinas da Mesopotâmia; mas teria trabalhado outros vinte anos, se tanto me fosse exigido. Sabia que me não sobravam talentos, mas também sabia de um adágio , que me foi esperança e consolo: “antigüidade é posto”. O tempo, com sua mão misericordiosa, havia de me ajudar a subir este alcantil. Amigo piedoso é o tempo. Assim como redime a posse viciosa, supre, às vezes, a escassez do mérito. O tempo enseja a lição da experiência, e pode dar ao juiz, ainda que desprovido de espírito brilhante ou vasta erudição, um adestrado sentido de justiça, para distin guir, de plano, onde está a verdade ou com quem está a razão. A juiz — digo-o sem receio de que me acusem de estar pleiteando pro domo mea — não se faz mister inteligência privilegiada ou farta munição de cultura. O que lhe é necessário, antes de tudo, é o espírito de ponderação, o ritmo psíquico, o equilíbrio moral, numa palavra: o bom-senso. Ter bom-senso é a qualidade primacial e indeclinável do juiz. De muitas inteligências excepcionais e cultíssimas sei eu que, no entanto, a serviço da justiça, não sincronizam com o exercício da função, lembrando os cinemas sonoros de arrabalde, em que as vozes não afinam com os movimentos, por carência de simultaneidade. É que lhes falta o indispensável corretivo do bom-senso. O irreverente Pitigrilli, no “Esperimento di Pott”, fez desse tema um motivo literário. Aqueles dois obscuros juízes que ladeavam o presidente Pott e que deste receberam afrontoso epíteto, é que tinham razão no julgamento de Ma ria Lanson. O bom-senso, o avisado e lhano bom-senso, dispensa os raciocínios sutis e os arabescos de dialética, que não passam, afinal, de irisadas bolhas de sabão. Enxerga por si mesmo, por si mesmo analisa, basta-se a si mesmo. Os complexos tratados de sabedoria jurídica e psicologia judiciária não valem, por certo, as sentenças de Sancho Pansa na ilha da Barataria. Na fase entusiástica dos estudos de psicologia forense, que falharam na tentativa de fornecer uma nova ciência aos juristas, dizia Alberto Moll, com toda razão, que nada havia a extrair desses estudos, porque a experiência do magistrado, servido de bom-senso, era sempre superior ao profuso, mas precário experimentalismo erudito dos psicólogos. Em conferência recentemente proferida na cidade de Vitória, proclamava eu que o magistrado sensato e traquejado, embora mediano de inteligência e de cultura, é uma garantia de melhor justiça. Sabe diagnosticar com acerto, sem necessidade de percorrer extensa bibliografia, que, muitas vezes, redunda num mal pelo excesso de escrúpulos e dúvidas que pode infiltrar ou pelo perigo de fazer perder de vista o caso concreto. Assenta bem no juiz a pele do homo medius. A prática de julgar, desde que ao juiz não falte a perspicácia comum, vale bem mais que uma regorgitante erudição livresca. Só ela pode dar presteza da intuição. Só ela pode ministrar a segurança e facilidade do golpe de vista, como o daquele aluno de escola rural que, solicitado a explicar por que chamara besouro ao inseto que viera de pousar sobre a mesa do exame, limitou-se a responder que bastava atentar no jeitão dele. De minha parte, posso declarar que, embora ignorante da ciência entomológica, mas ensinado pela experiência, também sei identificar besouros pelo aspecto e jeito. E não só os banais coleópteros. Apesar de jejuno na arte das ciladas bélicas, sei igualmente reconhecer os eqüinos troianos que costumam surgir, sob formas especiosas, no templo da Justiça. Talvez nem me seja preciso, para surpreender-lhes a perfídia, o ensaio de Laocoonte, que, suspeitoso da máquina ofertada pelos gregos, achou de arremessar-lhe no bojo a vigorosa lança, a cujo embate, conforme conta Virgílio, insonure cavoe gemitumque dedere cavernoe…
Não obstante ter ingressado na magistratura mediante concurso de provas, não sou um irrestrito apologista desse meio de seleção de valores para a carreira judiciária, precisamente porque, se pode apurar o necessário grau de aptidão cultural do candidato, evitando o favoritismo político de que se socorrem os incapazes, não permite demonstrar, entre outras qualidades essenciais ao magistrado, o senso prático, a saúde da alma, a firmeza de caráter, a harmonia do entendimento, o critério de justa medida. Não basta ao juiz cabedal, ainda que notável, de ciência jurídica. O magistrado erudito, mas sem a base de um sólido bom-senso, é piano desafinado. Que vale a um julgador semi-lunático ou insensato a requintada técnica do direito, se os fatos da relação jurídica se refletem no seu espírito como espelho côncavo ou convexo? A teoria do direito é aprendida nos livros, mas o senso de justiça é virtude inconcebível sem o bom-senso, sem a normal intuição que permite atinar, no exame dos casos concretos ou no deslinde das controvérsia, onde está ou com quem está o direito. O copioso recheio de erudição de uma sentença não é garantia de sua justiça, e pode ser mesmo atestado da incapacidade de fazer justiça ou disfarce à perplexidade do julgador, quando não ao intuito de deturpar os fatos para ajeitá-los a alguma elegante doutrina jurídica. Sentenças não são desafogos de sapiência ou paradas de erudição ad hoc, deglutidas na última vigília. Como adverte Calamandrei, no seu “Elogio dos juízes”, as sentenças judiciais não precisam de ser amostras de rebrilhante cultura de vitrina. O que lhes convém é que, dentro das possibilidades humanas, sejam justas, servindo ao fim prático de implantar a paz entre os homens.
Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrar-se, consultando a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica; mas, se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitates juris e das abstrações inanes, distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direito cerebrino e inumano; não o direito como ciência da vida, mas o direito como ciência de lógica pura, divorciado da realidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma, voltada para o mundo, mas um direito postiço, arrebicado, sabendo a palha seca e cheirando a naftalina de biblioteca.
O juiz que, para demonstração de ser a linha reta o caminho mais curto entre dois pontos, cita desde Euclides até os geômetras da quarta dimensão, acaba perdendo a crença em si mesmo e a coragem de pensar por conta própria. Dele jamais se poderá esperar uma solução pretoriana, um milímetro de avanço na evolução da adaptação das leis. O juiz deve ter alguma coisa de pelicano. A vida é variedade infinita e nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as roupas feitas da lei e os figurinos da doutrina. Se o juiz não dá de si, para dizer o direito em face da diversidade de cada caso, a sua justiça será a do leito de Procusto: ao invés de medir-se com os fatos, estes é que terão de medir-se co m ela.
Da mesma tribo do juiz técnico-apriorístico é o juiz fetichista da jurisprudência. Este é o juiz-burocrata, o juiz de fichário e catálogo, o juiz colecionador de arestos segundo a ordem alfabética dos assuntos. É o juiz que se põe genuflexo diante dos repertórios jurisprudenciais, como se fossem livros sagrados de uma religião cabalística. Para ele, a jurisprudência é o direito imutável e eterno: segrega-se dentro dela como o anacoreta na sua gruta, indiferente às aventuras do mundo. Será inútil tentar demovê-lo dos seus ângulos habituais. Contra a própria evidência do erro, ele antepõe, enfileirados cronologicamente, uma dúzia ou mais de acórdão, e tranqüilo, sem fisgadas de consciênc ia, repete o ominoso brocardo: error communis facit jus. À força de se impregnar de doutrina e jurisprudência, o juiz despersonaliza-se. Reduz sua função ao humilde papel de esponja, que só restitui a água que absorve. Constrói no seu espírito uma parede de apriorismos e preconceitos jurídicos que lhe tapam as janelas para a vida. Suas decisões semelham, pela ausência de naturalidade, às declarações de amor decoradas no “Conselheiro dos namorados”. Enquadrado o seu pensamento nos esquemas fechados do teorismo científico ou do casuísmo curial, sua alma se estiola e resseca, impassível aos dramas que vêm epilogar-se na sala dos tribunais. Água-se-lhes o sangue nas guelras, desfibram-se-lhes os nervos. Não sente o direito, que ele só conhece e declara dentro de fórmulas invariáveis e hirtas. Exerce a função tão fria e impessoalmente como o empregado de aduana ao classificar mercadorias sob as rubricas da tarifa. Deixa de existir nele a nobre exaltação da justiça, a ira sagrada em face da iniqüidade. Ignora ele que o homem de alma gélida, incapaz da ira necessária de que falava Aristóteles ou da ira per zelum autorizada por S. Tomás de Aquino, não pode elevar-se à altura do militante ideal da justiça. A representação simbólica da justiça como deusa de olhos vendados e a concepção do juiz como impassível cegonha à beira da correnteza da vida são idéias já inteiramente superadas. Justiça de olhos tapados é jogo de cabra-cega. Não lhe bastam ouvidos, porque aquilo que os olhos não vêem, coração não sente. Por outro lado, a toga não reclama animais de sangue frio ou mutilados morais. Não se interprete ao pé da letra o tópico do Sermão da Montanha sobre a “bem-aventurança dos mansos”. O próprio Cristo, num ímpeto de revolta, empunhou o azorrague para expulsar os vendilhões do templo.
Meus senhores:
Atinjo, hoje, o grau maior da carreira. É escusado dizer que não mudarei de rumo, nem de modo de andar. Serei no Tribunal de Apelação o que sempre fui na primeira instância: um juiz que, antes de consultar os manuais da doutrina ou as revistas de direito, aconselha-se com a própria consciência e dispõe, em qualquer conjuntura, de suficiente bravura moral para não atraiçoá-la. Continuarei a não temer o contato das paixões, cujo fogo, quando ateado por um fim nobre, constitui o mais belo espetáculo da vida. Continuarei a ser o juiz que, quando reconhece os próprios equívocos, não vacila em confessá-los e emendá-los. Continuarei a detestar o papel de Maria vai com as outras pelo só comodismo de e vitar uma discordância. Prosseguirei como juiz que não teme ameaças, nem se afrouxa com lisonjas. Continuarei a ter a coragem inteira da minha justiça, mesmo em face das demasias da autoridade ou dos punhos cerrados da multidão sediciosa. Continuarei a ser um juiz que não lava as mãos na bacia de Pilatos.

(em Revista Forense, Agosto de 1944, Notas e Comentários, págs. 571/573).

Por Walesca Cassundé via Facebook

Nenhum comentário:

Postar um comentário