quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O LIVRO ANTIGO


O livro mais antigo que conheço é o livro da minha vida. Tão antigo quanto eu, porém já contendo as lições, os exemplos, as histórias, as cronologias, as genealogias, a reunião de todos os saberes e tudo que pode ter uma enciclopédia do mundo e da vida desde os primeiros tempos, desde a primeira luz, desde o primeiro sopro.
Na verdade, o livro da minha vida não é apenas o livro mais antigo que conheço, como também é o livro mais antigo do mundo. Não há que se falar no I Ching, com mais de três mil anos; no Códice Dresden, um manuscrito do século XIII, no Mahabharata; na Epopéia de Gilgamesh, tábua de argila escrita em língua Acádia no século VIII a.C.; no Dharani Sutra; no Enuma Elis; no Alcorão; no Vedas; no Livro de Jó, de 1.700 a.C., que é o livro mais antigo da Bíblia. Nada disso é mais antigo que o livro da minha vida.
O livro da minha vida é o livro mais antigo porque guarda e compila ensinamentos anteriores que aos contidos no que se pressupunha como o livro mais antigo. Ao invés de estar escrito na pedra, no pergaminho, no barro ou na argila, na madeira ou em tábuas, está totalmente grafado com sangue nas paredes da memória, e que por serem sempre refeitos e acrescidos de conhecimentos e experiências novas, jamais serão apagados ou esquecidos.
Nele está escrito, por exemplo, que a raça humana ainda vive no estágio civilizatório mais primitivo que possa existir, numa barbárie e competitividade que até as raças ditas irracionais não se permitem; que todo o progresso é fruto das guerras, das rupturas, do medo do desconhecido e da eterna insatisfação do ser humano; que a paz que todos pregam é a mesma paz que é desfeita pelos mesmos defensores nos seus acordos, nos seus conchavos e nas suas leis; que por mais que certos homens vivam em comunidade, a solidão é a sua característica, vez que ninguém suporta o outro nem pelo outro é suportado.
Está escrito ainda, por exemplo, que família é o laço que une pessoas que se gostam, se respeitam e se relacionam bem, e não necessariamente uma reunião de pessoas de laços consangüíneos comuns; que tudo é volúvel, passageiro, transitório, frágil, feito cinzas quando o vento sopra e folhas ao final do outono; que a violência, a dor, o grito e a tristeza devem ser algo comum na experiência das pessoas, de modo que não estranhem esses visitantes que a toda estarão batendo às suas portas; que a morte não deve causar dor nem sofrimento porque é ela o que mais se busca, nas ações, nos gestos e nos chamados.
No meu livro estão escritas coisas de fazer pedra chorar, chuva parar no ar, vento fazer curva e voltar, dia virar noite sem o tempo passar. Imagine que ele diz que nascemos para ser felizes; que o amor pacientemente buscado pode ser encontrado; que a vida bem poderia ser a certeza do acerto de Deus na sua criação; que o homem de ferro, um dia chegará ao estágio de homem de barro para, num futuro distante, se tornar homem de carne e osso; que o homem deve temer a Deus, deve fazer o bem e procurar justificar com seus atos a dádiva divina da vida. Como se vê, o meu livro também possui muita utopia.
O problema que eu tenho com meu livro antigo é que quanto mais leio e releio mais tenho que voltar ao seu início para encontrar respostas para uma única pergunta: O que fazer com tanto saber diante de um mundo repleto de ignorantes? E então, como as outras pessoas, esqueço tudo que aprendi e me torno um igual perante os desiguais, procurando esconder a todo custo o livro antigo e precioso que possuo.
E todos pensam que tudo o que sei é pelo que reza a cartilha deles.

Rangel Alves da Costa*

Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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