terça-feira, 17 de maio de 2011

CADERNINHO DE ANOTAÇÕES


Lembro bem e tudo como se fosse hoje. Minha avó abria cuidadosamente a porta envidraçada da cristaleira e procurava num canto o carcomido caderninho de anotações que sempre guardava por lá.
“Pagar na bodega dois quilos de açúcar, um de feijão, um de arroz e outro de farinha. Comprar uma garrafa de querosene e dois pavios novos que é pra botar nos candeeiros. A camisa da lamparina também já tá acabando. Não esquecer de comprar uma barra de sabão e uma loção água de flores. Passar na casa da costureira pra ver se ela já fez meu vestido novo de chita, que é pra usar na procissão. Preciso mandar comprar um xale de renda novo, mas só quando pagarem os dois fardos de algodão que até já vieram buscar”.
Minha avó era assim, gostava de tudo certinho, anotado pra não esquecer nada. Além desse caderninho, andava com outro sempre no bolso da saia. Nesse guardava datas de nascimento dos parentes, endereços e muitas preces e orações, ainda que se lembrasse de tudo sem esquecer uma frase ou nome de santo.
Já meu avô fazia suas anotações e depois guardava o caderninho dentro de uma gaveta. Mal sabia ler e escrever, como a grande maioria da gente do lugar, mas caprichava nos traços que era pra não esquecer o significado daquilo que rabiscou e deu como escrito. Se nascia um bezerro ele anotava as iniciais do nome e depois colocava adiante o sinal de mais; se morria algum animal ou era vendido, lá ia ele colocar as iniciais e o traço de menos.
Como não sabia escrever tantos metros de largura por tantos de cumprimento, apenas fazia um quadrado ou retângulo e ia colocando os números de lado, numa engenharia que lhe enchia os olhos de prazer. E estava lá, escondido, mas escrito segundo ele sabia escrever: joao, mais adiante uma cruz e uma data; mane, mais uma cruz e mais uma data. E depois ficava triste pensando nos amigos que haviam morrido.
O caderninho de anotações de minha mãe vivia sempre sujo, oleoso, abarrotado de farinha de trigo por cima. Por mais que ela fosse mestra na feitura dos biscoitinhos de nata, bolo de leite de coco caramelado ou sorvete caseiro, ainda assim o caderninho estava lá em cima da mesa aberto na receita. Letra bonita, grande, desenhada, mas as folhas já iam perdendo a cor de tanto serem tocadas e repassadas página a página.
“Três xícaras de leite, duas colheres de manteiga, três ovos, quatro medidas de farinha de trigo, nata de três litros de leite guardados por uma semana, sal a gosto e uma pitadinha de açúcar. Misture numa tigela grande todos os ingredientes, menos a nata, que só deve ser acrescida quando a massa já estiver descansada por dez minutos. Depois jogue a nata, misture tudo e cubra com um pano de prato limpo por mais dez minutos. Depois unte uma assadeira, espalhe farinha de trigo por cima e vá fazendo os bolinhos finos e compridos com as mãos, arrumando de modo a não ficar muito juntos. Com o forno já quente por cinco minutos, é só colocar por mais uns dez. Deixar esfriar e colocar num lugar apropriado”. Mais abaixo dizia: só fazer os biscoitinhos quando houver nata suficiente e leite puro da fazenda.
Já eu nem sei o que guardo ou escrevo nos meus cadernos de anotações. Às vezes encontro mais de três, outras vezes reviro tudo e não acho nenhum. Mas nunca escrevi coisa assim tão importante, algo que merecesse ficar sempre fácil de encontrar. Pedaços de poemas talvez, frases que imaginava bonitas, pequenos enredos para histórias que jamais escrevi. Nenhum nome que precisasse recordar, nenhum nome que pudesse lembrar, nenhum nome que não pudesse ser esquecido.
Mas confesso que levo sempre comigo um pequeno pedaço de papel que é muito mais importante do que qualquer outra coisa. Escrevi com minha própria letra e levo aonde for, no fórum ou olhar a lua por cima da noite. É muito simples, mas grandioso, e me soa como a mais bela poesia:
“O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Em verdes prados ele me faz repousar. Conduz-me junto às águas refrescantes, restaura as forças de minha alma. Pelos caminhos retos ele me leva, por amor do seu nome. Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois estais comigo. Vosso bordão e vosso báculo são o meu amparo. Preparais para mim a mesa à vista de meus inimigos. Derramais o perfume sobre minha cabeça, e transborda minha taça. A vossa bondade e misericórdia hão de seguir-me por todos os dias de minha vida. E habitarei na casa do Senhor na amplidão dos tempos”.
Salmo de Davi. Salmo 22. Nunca te esquecerei.



Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: Rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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