sexta-feira, 8 de julho de 2011

a rosa vermelha e a rosa amarela


Os segundos passavam lentamente enquanto Lívia tentava, em vão, concentrar-se na sua Tese de Mestrado. Pousou os olhos pelo relógio da sala. Já passava das 23h. Exausta, caminhou até a suíte do seu apartamento e ligou a banheira. Talvez um banho quente a animasse. Escolheu uma toalha limpa, pendurou o roupão e ligou o som do quarto. Deixou-se espatifar na cama, cantarolando alguns versos de Chico Buarque enquanto esperava a água chegar a temperatura exata. Lembrou, por altos, que havia comprado o seu vinho preferido e esquecido há dias a garrafa na adega. Correu até na cristaleira e separou uma taça. A dele. Fechou os olhos como se tentasse retroceder no tempo. Colocou os lábios silenciosamente na taça percorrendo toda a extensão do cristal com a língua. Sentiu, por um instante, um vácuo de solidão invadir sua alma. Abriu os olhos e deu um suspiro resignado. Serviu-se com uma dose exagerada de vinho tinto e vagou absorta até o banheiro. Despiu-se apressadamente e deixou o corpo escorregar pelas águas quentes da sua nostalgia. O som do quarto chegava suave até o banheiro e Lívia entregou-se completamente as suas lembranças. Trouxe a imagem de André para aquele cenário aconchegante. Havia o conhecido na Bienal, em São Paulo. Os dois estavam na mesma fila, aguardando o autógrafo do seu autor preferido. Pura tietagem. Conversa vai, conversa vem, descobriram que moravam na mesma cidade e atuavam na mesma área. Ele professor de Química, ela de História. Depois do autógrafo foram almoçar juntos numa galeria ali mesmo, na Bienal. Lívia era uma mulher interessante. No auge dos seus 35 anos era bem humorada, inteligente e sedutora. Recém separada e não tinha filhos. Apesar de adorar crianças, essa foi sua opção. André era simpático, bonito, enigmático e casado. Realmente, ninguém é perfeito! Com trinta e oito anos não aparentava a idade que tinha. Trocaram telefones e endereços, sonhos e experiências. Depois de quase duas semanas André apareceu na casa de Lívia, num sábado a tarde. Os dois conversaram muito e entre um copo de vinho e outro acabaram tornando-se amigos e por que não confidentes? André jamais “se tocou” que Lívia esperava mais daquela amizade. Um dia ela cansou de ser apenas um ombro amigo e tomou uma decisão. Naquela mesma noite André encontrou a porta do apartamento de Lívia fechado. Exigiu uma explicação. Queria entender tal reação. E entendeu. Após ouvir os argumentos de Lívia achou melhor recuar. Retrocedeu e pediu desculpas. Mas antes de entrar no elevador, enlaçou a cintura de Lívia, beijando-a demoradamente. Depois disso, não se viram mais. Lívia não via aqueles olhos há mais de quatro meses... meses que pareciam séculos. Então, para acalmar o desespero de não vê-lo por perto, resolveu afogar suas saudades no estudo. Porém as lembranças não davam um minuto de trégua, insistindo em reavivar as cenas daquele passado recente.
Na banheira, Lívia relembrava pequenos momentos que avolumaram-se em grandes recordações: olhares repentinos, sorrisos indiscretos, toques maliciosos, risos sem causas palpáveis, conversas sem nexo, palavras jogadas e interpretações secretas...
E assim, perdida em suas lembranças, é que Lívia, sorvendo o último gole do seu vinho preferido, escutou ao longe o toque do interfone. Levantou da banheira sentindo-se meio zonza, fazendo força para alcançar o roupão. Caminhou até a cozinha e atendeu o interfone. Seu Antônio comunicou que um amigo estava subindo e que ele insistia em dizer que ela o estava esperando. Sem interpretar muito bem as palavras, Lívia agradeceu e foi atender campainha. Quase desmaiou quando encontrou André na soleira da porta. Sorrindo de um jeito irresistivelmente moleque trazia uma garrafa de vinho numa das mãos e duas rosas na outra: uma amarela e uma vermelha.
Meio sem jeito Lívia pediu para que entrasse. Virou-se para fechar a porta tentando, em vão, se recompor. Quando voltou a si deu de cara com os olhos de André a percorrer o seu corpo, envolto apenas pelo roupão. A água que escorria pelas suas pernas encharcava o piso de madeira.
- Me perdoe, André. Não estava esperando ninguém a essa hora da noite. Deixa eu me trocar, e...
- Antes disso, responda-me só uma coisa: você prefere a rosa amarela ou a vermelha?
Percebendo a proximidade dos lábios de André e sua explicita intenção, ela respondeu:
- A rosa amarela você pode levar para sua esposa, já que ela é a sua melhor amiga. Já a vermelha...
Sem esperar o complemento da frase, André riu deliciosamente. Puxou o rosto de Lívia para o aconchego do seu peito quente e a beijou desesperadamente. Com uma das mãos abriu o seu roupão, deixando-o cair no chão, ao lado daquela rosa vermelha. De súbito, pega-a no colo, fazendo-a tirar os pés dos chão, literalmente. Com os olhos fixos em seu rosto de menina corada caminha lentamente até o quarto e a coloca, delicadamente, entre as almofadas da cama. Enquanto ele se despia ela o namorava.
André percebendo o feeling do momento, aproveitou a música romântica que compunha a magia daquela cena e começou beijar os pés de Lívia. A cada centímetro percorrido pelos seus beijos, cantava meio desafinado a versão masculina da música: “depois de você... as outras são as outras... e só”. E assim, amigos, românticos, amantes e apaixonados, os dois amantes atravessaram a madrugada embriagados de vinho, música, amor, poesia, palavras, risadas e sexo. Aquela noite foi a melhor de toda a vida de Lívia.
Aquela noite foi a mais incrível de toda a vida de André.
E foi por isso que, naquela mesma manhã, fizeram um pacto de felicidade: da porta do apartamento para dentro a paixão estaria liberada a cama dos amantes forrada com pétalas de rosa vermelha.
Da porta do apartamento pra fora o amor emprestaria o disfarce daquela rosa amarela e daria, sem culpa, as mãos para a amizade.
Pouca vergonha? Pode ser, mas o que adianta ter muita vergonha nessa vida? Você faz o que com ela? Torna-se melhor que alguém?
Falta de caráter? Pode ser, mas o que adianta ter excesso de caráter e uma baita falta de amor, de sexo e de tesão?
Ser “a outra”? E daí? Antes ser “a outra” do que ser “a infeliz”?
O bem da verdade é que cada um tem aquilo que escolheu. E se essa não foi a sua escolha, isso não lhe garante, em hipótese alguma, que o seu resultado será melhor do que o “da outra”.
O que realmente importa nesse mundo é viver feliz e se, na pior das hipóteses, o seu marido (ou esposa) descobrir, pelo menos você vai morrer de amor... e vamos combinar, tem morte mais romântica que essa? Ahhh não tem não...

Gilmara Giavarina

Publicado no Recanto das Letras

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