domingo, 9 de janeiro de 2011

QUEM FEZ ESSA MÃO?


Quando assumi a paróquia de Icó, e subi a primeira vez a serra do Câmará, a cavalo, para celebrar na capela de Santa Cruz, que distava uns 50 km da cidade, foi numa tarde de sol escaldante, no mês de julho.
A viagem era penosa, porque as ladeiras eram íngremes e tortuosas, não havia a sombra acolhedora de uma árvore, e o trecho mais longo e difícil era deserto. Já não suportava o calor, a sede que queimava a minha garganta, a camisa ensopada de suor, colada no meu corpo, quando avistei a uns 500 metros da estrada, uma casa de taipa.
Não tive dúvidas, dirigi-me para lá, e no costume sertanejo, gritei: Ô de casa! Lá dentro da casa, uma voz feminina respondeu: - Ô de fora!
Aproxima-se uma senhora, e quando reconheceu que era um padre, correu para o interior da casa, o que fez suspeitar que ela tivesse medo de padre. Mas que fora apenas colocar os pés na chinela, pois estava descalça, e não queira faltar com respeito à “seu vigário.”. Pedi um copo d’água, o que ela fez de pronto, tomando antes a bênção com respeito e reverência.
E toca a chamar os filhos para também serem abençoados pelo padre, e o fazia de maneira quase agressiva, empurrando as crianças, que timidamente se aproximavam de mim. Eram uns oito filhos, todos trazendo as marcas da desnutrição, verminose, opilados, magros, barriga crescida, todos os sintomas de uma acentuada degenerescência genética.
Uma das meninas pediu-lhe a benção, estendendo a mão esquerda. A mãe intempestivamente lhe dá uma tapa no rosto, mandando que ela cumprisse o ritual com a mão direita.
E aquela criança, mal podia ter uns sete anos de idades, mirrada de carne, macilenta, frágil até na fala, voltando-se para a mãe e estendendo a mão esquerda, disse em voz de choro: - Mamãe, e esta mão não foi feita por Deus?
Confesso que fiquei profundamente emocionado. Jamais ouvira dos lábios de alguém tanta sabedoria, tanta profundidade evangélica. Tanta intuição humanista, como dos lábios daquela criança analfabeta, inculta, doente até mentalmente. Quem, por acaso, lhe inspirara senão Deus? Não foi isto que disse aos apóstolos, momentos antes de despedir-se deles: - “pai, eu vos agradeço, porque revelastes vossos mistérios e arcanos ao simples e humildes, e os ocultastes aos sábios e poderosos”.
Jamais esqueci o fato. E tomei muitas vezes como tema nas minhas palestras, sermões e conferencias para demonstrar que Deus não discrimina, não cria diferenciações sociais, religiosas, raciais e culturais. O espetáculo mais deslumbrante, que contemplamos nos céus é um arco-íris, uma apoteose e transfiguração de cores, uma tela policromática como o arrebol do acaso ou da madrugada. E ali não encontramos nem o preto, nem o branco. Nós é que construímos muralhas e fossos de separação, em vez de fazermos pontes e estradas, que unam os pontos opostos e distantes.

Padre Antonio Vieira

Escritor da cidade de Várzea Alegre Ceará
do seu livro Fatos interessantes e pitorescos.

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